Saramago
Correndo o risco de este blog ser confundido por 'Saramago fan club': poucas coisas me têm impressionado tanto como a perseguição organizada a José Saramago por parte de larga fatia da sociedade portuguesa, como sempre em seguidismo de algum do seu mais notabilizado status quo.
Os pretextos são que o homem não sabe escrever, que usa muitas vírgulas, que ninguém percebe o que escreve, o que é tramado, o homem é analfabeto, talvez até ordinário, como é que ele ganhou o Nobel?; que é um espécie de maléfico 'esqueleto' estalinista; que é um herético porque escreveu o Evangelho Segundo Jesus Cristo; que detesta Portugal porque vive em Espanha; que ataca a democracia com a temível ameaça do voto em branco; que gosta de carne em vez de peixe e de peixe em vez de carne. Aguardo ansiosamente o dia em que digam que Saramago não presta porque não usa desodorizante.
Isto, caro leitor, chama-se Inquisição, e está à altura da mediocridade ideológica de uma qualquer Censura e da má vontade de um Torquemada. Simultaneamente, é um fenómeno sociológico interessante. Saramago tornou-se um saco de porrada nacional; e várias aberrações intelectuais se desenvolveram em redor deste ódio. Por exemplo, hoje em dia roça o 'chique', é quase sofisticado, dizer-se que nunca se leu Saramago, mas que, ainda assim, se acha que ele é mau escritor, uma vez que tem posição política X e disse Y numa entrevista; e como ele é mau escritor, pronto, não vale a pena ler. É daquelas posições broncas, demagógicas, e irresponsáveis em que o tuga é pródigo.
Em Portugal debatem-se pessoas em vez de ideias, escândalos em vez de contextos, e lê-se bogalhos ou coisas piores onde originalmente está escrito alhos. E em Portugal detestam-se os inovadores, ou pura e simplesmente, aqueles com ideias diferentes. Saramago é um tipo assim.
Primeiro atreveu-se a colocar em cheque os dogmas e convencionalismos da literatura portuguesa, o que, claro, é gravosa ofensa para todos os representantes do nazismo cultural em Portugal.
O segundo maior atrevimento foi escrever uma assumida ficção sobre a vida de Jesus Cristo, o que meteu em polvorosa fanáticos religiosos e moralistas de ocasião, por igual medida (mas aí o fenómeno não foi só por cá, valha-lhe ao menos isso).
O terceiro atrevimento é ser um tipo bastante frontal, que diz a sua opinião e critica o seu país de origem nos aspectos que acha que devem ser corrigidos. Mas a mentalidade tuga detesta frontalidade e sente-se em casa nas águas turvas das meias-palavras e da hipocrisia. Para além disso é por natureza acomodada e passiva e não vê com bons olhos que lhe venham apontar defeitos. Em consequência, e para justificar a sua falta de civismo e de tolerância democrática para com opiniões divergentes, entretem-se a encontrar 'defeitos' naquele que expõe essas opiniões. Neste caso, a vida que Saramago mantem em Lanzarote (como se alguém tivesse o que quer que seja a ver com isso), que, na boca da demagogia de trazer por casa, muito popular por cá, é sinal de anti-patriotismo; assim como as preferências estalinistas de Saramago, que, por detestáveis que sejam (é a minha opinião), nunca deveriam contar para uma discussão consciente de princípios, problemas, soluções. Quando a democracia é saudável não se faz como é usual por cá - não se debatem as pessoas em vez das ideias.
O quarto atrevimento de Saramago foi ter ganho o Nobel. Estou convencido que esse foi de facto o ponto determinante, o verdadeiro imperdoável da questão. O tuga típico está disposto a 'perdoar' o estilo de escrita e as 'heresias' à volta de Cristo, rotulando-os de excentricidades e olhando o seu autor com a condescendência petulante que se dedica a um 'génio louco', um tipo engraçado, com imaginação, mas do qual há que manter as devidas distâncias, "porque não é um de nós".
Mas o que o tuga não está disposto a perdoar, aquilo que de facto o mete piurso por dentro, é que esse excêntrico, o tipo que desafia os padrões sociais e age e pensa de modo diferente, que esse excêntrico ande por aí a ganhar reconhecimento junto de gente credível e a ter sucesso na vida. O tuga não tolera sentir-se inferiorizado; que é o que sente quando vê um homem como Saramago vencer na vida. É um padrão cultural já com larga tradição em Portugal, essa inveja, essa dor de corno. Quando isso se manifesta, estala o verniz e passa a valer tudo: a quadrilhice, a invenção de boatos difamatórios, o insulto velado no cinismo das palavras.
Falo de Saramago como poderia falar de muitos outros. A nossa História é pródiga em pessoas que, sendo maltratadas cá, são acolhidas de braços abertos em países onde se dá valor à criatividade e ao valor individual. Até quando terá que ser assim, pergunto eu?