sábado, agosto 20, 2005

Ainda Dorian Gray













O Prefácio, do próprio Oscar Wilde:

O artista é o criador de coisas belas.
Revelar a arte e ocultar o artista é o objectivo da arte.
O crítico é aquele que consegue traduzir de outro modo ou em novo material a sua impressão das coisas belas.
........A mais elevada, como a mais medíocre, forma de crítica é uma expressão autobiográfica.
Os que encontram significados disformes em coisas belas são corruptos sem agradarem, o que é um defeito.
................Os que encontram belos significados em coisas belas são os cultos. Para esses há esperança.
....São os eleitos para quem as coisas belas apenas significam Beleza.
........Não existem livros morais ou imorais. Os livros são mal ou bem escritos. É tudo.
A antipatia do século XIX pelo realismo é a raiva de Caliban ao ver a sua cara ao espelho.
................A antipatia do século XIX pelo romantismo é a raiva de Caliban por não ver a sua cara no espelho.
....A vida moral do Homem é assunto para o artista, mas a moralidade da arte consiste na perfeita utilização de um meio imperfeito. Um artista não quer provar coisa alguma. Até as coisas verdadeiras podem ser provadas.
........Um artista não tem simpatias éticas. Uma simpatia ética num artista é um maneirismo de estilo imperdoável.
............Um artista nunca é mórbido. O artista pode exprimir tudo.
....Para o artista, o pensamento e a linguagem são instrumentos de uma arte.
........Para o artista, o vício e a virtude são matéria de uma arte.
Do ponto de vista formal, o modelo de todas as artes é a arte do músico. Do ponto de vista sentimental, o trabalho do actor é o modelo.
................Toda a arte é simultaneamente superfície e símbolo.
....Os que penetram para lá da superfície, fazem-no a suas próprias expensas.
............Os que lêem o símbolo fazem-no a suas próprias expensas.
O que a arte espelha realmente é o espectador e não a vida.
....A diversidade de opinião sobre uma obra de arte revela que a obra é nova, complexa e vital.
............Quando os críticos divergem, o artista está em consonância consigo próprio.
Podemos perdoar um homem que faça uma coisa útil desde que não a admire. A única desculpa para fazer uma coisa inútil é ser objecto de intensa admiração.
............Toda a arte é perfeitamente inútil.

quinta-feira, agosto 18, 2005

(...)
Ela meneou a cabeça.
- Eu acredito na raça - exclamou.
- Representa a sobrevivência dos carreiristas.
- Está a evoluir.
- A decadência fascina-me mais.
- E então a arte? - perguntou ela.
- É uma doença.
- O amor?
- Uma ilusão.
- A religião?
- Uma invenção da moda para substituir a Fé.
- És um céptico!
- Nunca! O cepticismo é o princípio da Fé.
- O que és então?
- Definir é limitar.
- Dá-me uma pista.
- Os fios desfazem-se. Havias de perder-te no labirinto.
- Deixas-me perplexa. Vamos falar de outra pessoa.

Lord Henry e Lady Gladys in Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray, Relógio de Água (1998), Lisboa, pág. 243.

Vecellio Tiziano: Amor Sagrado e Amor Profano (1514)





Padre Manuel Bernardes: Dá duas vezes quem dá logo

Passando el-rei D. Sebastião do Paço de Xabregas para o mosteiro, chegou uma mulher a apresentar-lhe um memorial. Recebeu-o e entregou-o a um fidalgo dos que o acompanhavam.

Ela, afligida, disse:
- Senhor, corre minha honra perigo na tardança.
Pôs nela os olhos el-rei, com aquele afecto de pai que foi tão próprio de seus antepassados para com seus vassalos; pediu recado de escrever e ali mesmo despachou o memorial, dizendo:
- Os negócios desta qualidade em toda a parte devem ter despacho pronto.
Semelhante presteza em despachar se escreve de Viroldo, duque da Lituânia, o qual, até estando à mesa, ouvia os requerimentos, assinava os papéis, recebia as embaixadas.
De João Corvino, governador do reino de Hungria, dizem que em qualquer parte, em pé, e sentado, e andando, e a cavalo, ia sempre administrando as obrigações de seu ofício.
O imperador Trajano, de alcunha O Erva Parietária (porque em todos os edifícios que fez mandou pôr o seu nome na parede), estando de partida contra os Dacos, ao passar de Roma lhe saiu uma viúva clamando justiça contra os homicidas de seu filho. E o César, desmontando do cavalo, a ouviu benignamente e satisfez a seus desejos.
Há negócios e ocorrências que se lhes deve acudir como se tangeram a fogo. Que ridículo seria o que, chamado para apagar um incêndio, respondesse mui repousado:
- Em almoçando, eu vou logo!
Gabeliano foi réu de morte por deter três dias o aviso de uma conjuração que lhe foi delatada, e fundou-se a sentença em que em ordem a cautelar o próprio dano, podia cada um ser incrédulo ou animoso, mas, em ordem a salvar o alheio, quem mais teme, melhor satisfaz à sua obrigação.
Importa que o espírito do príncipe e do magistrado tenha alguma porção ígnea que o incline a fazer o seu ofício, não frouxamente, mas com prontidão e viveza (...)
Assim como quem dá logo dá duas vezes (Bis dat qui cito dat), assim parece que despacha duas vezes quem despacha bem e logo. Despacha uma vez, concedendo a mercê, e despacha outra, atalhando passos, cuidados e despesas.
Ao rei D. João II de Portugal chegou um pretendente, pedindo certo ofício.
- Já está dado - disse o rei.
E o pretendente lhe rendeu as graças, beijou a mão e despediu-se.
Suspeitou o rei que não percebera a repulsa, e disse:
- Vinde cá: De que me destes as graças?
- Pela mercê - respondeu - que V.A. me acaba de fazer.
Tornou o rei:
- Que mercê vos fiz eu?
- Senhor - disse ùltimamente o homem -, a de desenganar-me sem me remeter a ministros, porque nisso me poupou muitos passos, e enfado, e dinheiro, que havia de desembolsar sem proveito.
Nestes danos não reparam os ministros e seus oficiais, retendo as causas e derretendo as partes tanto tempo, que na sua mão parecem estar os papéis não só presos, mas já mortos e sepultados, porque lhes põem uma pedra em cima, que é mais do que dizia o adágio antigo De paxillo suspendere (pendurá-lo de um torno ou cabide), para significar a negligência e descuido nos negócios.
Há causas (se não são das que morreram desesperadas) que podem competir com João dos Tempos, de que dizem que viveu 361 anos. Se não param de cansadas, pelo menos andam tão devagar que tudo se vai em Manda, remanda; manda, remanda; expecta, reexpecta; expecta, reexpecta, e com este manda e remanda, se faz eterna a demanda, e, com este espera e reespera, o pobre, enfim, desespera.
Dizem que Hábis, filha do rei Górgon, por haver sido criada nos bosques com leite de uma cerva, saiu ligeiríssima no correr. Estou considerando que leite mamaria uma destas causas ou requerimentos na mão dos ministros e seus oficiais, que não há remédio a fazê-la correr. Se beberia o leite da preguiça do Brasil (a quem os Castelhanos chamam por ironia perrillo ligero), que gasta dois dias em subir a uma árvore, e outros dois em descer?
Mas não é adequado o símil. Porque a preguiça do Brasil anda devagar, mas anda, e a preguiça do Reino e seus ministros, a cada passo pára e dorme. Dois meses para entrar um papel, e parou; outros dois para subir a consulta, e tornou a parar; outros dois para descer abaixo, e temo-la outra vez parada. Mais tantos meses para se verem os autos, mais outros tantos para se formar a tenção, mais tantos anos para embargos, apelações, suspensões, dilações, visitas, revistas, réplicas, tréplicas... Oh! preguiça do Brasil, já eu digo, não por ironia, senão por boa verdade, que tu, em comparação da preguiça do Reino, és perrillo ligero.
Diz Plínio que o lavrador que se não encurva sobre o arado prevarica, isto é, faz os sulcos da terra torcidos (Arator, nisi incurvus, praevaricatur), e, sendo torcidos, claro está que hão-de sair sempre mais compridos do que podiam ser, pois a linha recta sempre é a mais breve. Parece-me que daqui procede que (pelo não atribuirmos a piores causas) serem tão compridos e prolongados os sulcos ou caminhos que faz uma causa nas mãos de um ministro. São compridos porque não são rectos, e não são rectos, porque ele não se encurva sobre a banca, não se inclina sobre os livros, não se aplica ao seu ofício - e isto é o mesmo que prevaricar.

Pe. Manuel Bernardes, Século XVII
in Nova Floresta
, Editorial Verbo (1965), Lisboa.