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(Da boa utilização dos calmantes)



I

Ai-nhá-nhá-nhá-nhá! Será que este paisano me vai obrigar a esperar muito assim, a mim, que ainda sou do tempo em que se serravam as pernas sem anestesia? Na verdade, a minha longevidade extraordinária permitiu-me percorrer o longo caminho que vai de Arcole a Moscovo e de Magenta a Reichshoffen para terminar na Avenida de Tourville, e de ver alguns destes majores desde Marjolin até Nélaton. E fora precisamente um desses senhores que eu viera consultar, por causa de umas dores de cabeça.
Depois de fazer continência, o médico pôs-se em sentido para inquirir o meu caso, que lhe expliquei por meio de alguns desenhos por mim traçados na parede; é que, como disse o baixinho da madeixa, um croquis diz-me mais do que o mais longo discurso.
As minha explicações devem ter sido muito claras, pois, pegando num serrote, retirou-me uma lasca da cabeça, que examinou atentamente.
- Está a entrar-lhe o bicho - disse-me. - Temos de substituir por outra de mogno.
- Mas assim fico a parecer um preto - exclamei.
- Então - replicou. - Já estou a ver o que precisa. Precisa de uns calmantes.


II

- Ó papá, o qué que o sinhor me vai fazer?
- Nada, rapaz, não vai fazer nada.
- Então, se ele não vai fazer nada porqué que me trazem ao sinhor?
- Porque estás com dores, nino, estás com dores.
- Ó papá, sabes melhor do que eu?
Ele já ia a dar-me uma estalada, quando entrou um sujeito. O meu papá chamou-lhe senhor doutor.
- Então o que é que tem o miúdo?
- Dói-lhe a cabeça, senhor doutor.
- Se calhar, estuda de mais.
- Quem, ele? É um cábula!
Olha que esta agora, eu cá não sou nenhum cábula, por isso deitei a língua de fora ao papá.
O doutor olhou para ele e disse:
- Já estou a ver o que é, precisa de uns calmantes.


III

O médico marcou-me consulta, e eu pensei cá para comigo: porreiro, não vou ter que esperar.
Cheguei lá; quinze pessoas. Não fiquei nada contente. Felizmente, tinha lá revistas. Pus-me a olhar para as figuras. Doze pessoas. Fiz as palavras cruzadas. Oito pessoas. Fiz o problemas de bridge, mas como não sei jogar, foi bastante difícil.
Por fim, chegou a minha vez.
Entrei. O médico disse-me: dispa as calças.
- Ah, desculpe - disse-lhe. - Vim cá porque me dói a cabeça.
- Ah ah, dor de cabeça - disse-me ele. - Tem ideias fixas?
- Tenho, fixas à cabeça.
- Consegue localizar a dor?
Localizar - que é que ele queria com aquele localizar? Mais uma palavra fina para assustar as pessoas.
- Vou examiná-lo - disse-me ele.
- Isso não é coisa difícil - disse-lhe eu e abri a boca e mostrei o dente do siso, o que está estragado.
Pôs-se a olhar para ele e disse-me:
- Já estou a ver o que é. Precisa de uns calmantes.


in Contos e Ditos de Raymond Queneau (1979)