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Lisbon by night

Não reajo bem a tentativas de assalto. Nessas ocasiões tenho travadinhas mentais e recuso-me a dar um cêntimo que seja. Sei que não é a coisa mais sensata a fazer, mas poucas coisas me revoltam mais que o facto de existirem pessoas que pensam que têm o direito de roubar algo que veio do meu suor ou do suor dos meus pais. Até hoje tenho tido sorte (24 anos de experiência de vida na cidade têm ajudado), sei bem que a sorte pode não durar para sempre, mas não sou capaz de fazer de outra maneira.

Ontem à noite voltei a ser confrontado com uma situação do género, mas apesar de tudo consegui não ter motivos de queixa por aí além. A história é simples. De regresso do parque das nações, apanho o 50 da 1 a.m., o último da noite, e tenho a fantástica ideia (o meu cérebro congelou temporariamente, só pode) de me sentar nos últimos lugares do autocarro. Tudo bem até à rotunda do relógio. É aí que um grupo de mitras, que vinha a dar de si durante toda a viagem (berros, saltos, gritinhos…, ou seja, tudo o que a mitra deve ter por tópicos num qualquer manual de comportamento para psicopatas em autocarros da madrugada…), é aí que este grupinho de sete ou oito valentes rapazes começa a topar o meu vizinho do banco da frente, um tipo novo que vai calmamente a segurar o maço de tabaco e o telemóvel 3G bem à vista. Finjo que não tenho consciência da situação e assumo aquela pose simultaneamente relax e macho alfa que parece instintiva nestas situações… o meu grau de concentração nos néons que passam lá fora torna-se quase académico, e os mitras tornam-se seres visualmente inexistentes. Entretanto, o meu vizinho já está a ser assediado pelo ‘ponta de lança’ do grupinho (nestes grupos há sempre um, que é aquele mete-nojo que faz a primeira abordagem e que é geralmente o mais puto, mais feio e mais ranhoso do grupo inteiro – este caso não foi excepção). Vem a conversa de merda do ‘sócio’, do ‘arranja aí um cigarro’, ‘epah, tens lume’… logo depois, cigarro acendido, isqueiro ao bolso do mitra… e o resto do grupo entra em cena. ‘Não dá para arranjares aí mais um cigarro oh sócio’, ‘não tens aí uns trocos’, etc etc, e o desgraçado do meu vizinho já está completamente encurralado. Entretanto, os tipos também já repararam em mim. Um que tinha ficado mais para trás vem-se sentar ao meu lado e começa a encostar-se a mim no assento e a dar-me toques no braço (engraçados os modos apaneleirados que este tipo de grandes machos adoptam nas suas abordagens); os outros estão a rir-se da situação, mas tento engolir o ódio que sinto e finjo que ignoro.

Se o meu vizinho já está completamente no torno, percebo que a situação vai começar a apertar para o meu lado daí a nada. O mete nojo ao meu lado continua no seu jogo de insinuação e reparo que outros dois já estão a rodear-me, para tapar o corredor à minha frente. O mais próximo não está interessado em subtilezas, e dá um ligeiro pontapé à minha mochila, que eu trazia aos pés (para quem – felizmente – nunca teve que gramar este género de coisas, este tipo de provocações silenciosas têm o intuito único de provocar o contacto visual entre ‘predador’ e ‘vítima’; e este contacto é o estímulo desencadeador de tudo o resto. A conversa de merda quase nunca começa sem esse momento prévio, não me perguntem porquê. É uma regra de ouro no modus operandi da mitralhada, por isso suponho que lhes dê algum gozo próprio ao estado de acefalia crónica). Continuando: é evidente que não lhes dou a vantagem desse contacto visual (e custou). Reparo que a próxima paragem é já a seguir, e resolvo tentar sair dali antes que a coisa se complique. Levanto-me calmamente, pego nas coisas, …sempre a manter a actuação relax, páro para carregar no botão de stop… e passo calmamente pelo meio dos dois tipos no corredor, apesar de não me safar do encontrão violento da praxe. Mas até me deixam passar na boa e nem consigo acreditar na sorte que acabei de ter. Afinal de contas eu já estava qualquer coisa como encurralado. Atrás de mim a conversa com o meu vizinho está cada vez mais excruciante (já passou para o telemóvel…), dá-me a ideia que os mitras já estão também a avançar para outras pessoas, e é com um certo alívio paranóico que saio do autocarro.

Mas a narrativa muda. Acaba Irvine Welsh e começa Kafka. Já na rua, ligo para a polícia para avisar do que se está a passar, e depois das mais variadas trocas e baldrocas no atendimento, lá consigo falar com um dos agentes. Explico que há um rapaz a ser assaltado por um grupo no 50 para Algés, que eu próprio nem sei bem como escapei, e que o assalto pode arrastar-se a mais gente, …, as coisas básicas. O agente então pergunta-me se eu sei onde é que o autocarro está. Um pouco baralhado com a pergunta, respondo que devido à demora em ser atendido não posso ter a certeza, mas que já deve estar para os lados de Benfica. Ele pergunta-me onde em Benfica, e eu respondo que só posso supor que esteja a chegar à Estrada da Luz ou algo assim; mas também que de qualquer das maneiras deverá ser fácil de identificar, visto que é o último da noite, e o anterior já terá passado há pelo menos meia hora. Vai daí, ele pergunta se eu sei de ruas específicas nas quais o 50 pare, e eu aí digo que só conheço a rua da Venezuela. E então ele observa que a minha descrição do itinerário não é muito objectiva (ao que me apetece responder que não sou um mapa ilustrado da cidade de Lisboa). Acabo por dizer educadamente que, com toda a certeza a polícia deverá ter melhor conhecimento deste tipo de informação que o cidadão comum. Toquei num ponto sensível, suponho, porque ele larga este tema e começa a fazer perguntas sobre o grupo propriamente dito. Por fim, após mais uns minutos de conversa, ele diz que vai comunicar o sucedido às patrulhas, mas que elas provavelmente não vão poder fazer nada. Nada que eu nessa altura já não estivesse à espera de ouvir, mas é naquela…

Depois, quando segui a pé para casa, reparei – nesta altura estava particularmente sensível para isso – que, ao longo da cerca de meia hora que andei pelas ruas desertas, não vi um único polícia ou carro patrulha o caminho inteiro. E não estamos a falar de ruelas ou becos, mas sim de uma avenida e de várias ruas principais. Encorajador.

Continuo a gostar de viver nesta cidade. Mas há alturas em que me apetece tirar umas férias prolongadas dela.

és um cronista de primeira classe... e quanto ao assalto, que mais a dizer? um daqueles momentos em que sentimos uma mistura de emoções fidagais próprias de quem tem um mínimo de decência e é obrigado a conviver com estes cristais de rudeza...

Catarina

Era mesmo só à estalada esse policia. Até parece que em toda a força policial (patrulhas de Benfica incluidas) não haveria ninguém que soubesse a rota do autocarro ou o conseguisse localizar! Nervos!!!
Ainda bem que te conseguiste safar, situações de assalto são a coisa mais ilógica, stressante e cretina que existe!

Essa crónica deveria vir num jornal
hehe Sério! Teria algumas divergências, mas.... atentendo ao jornalista.... sorte? O que é a sorte,posso saber? Nesse ou noutro contexto. beijos....

Não estás a falar de Lisboa, amigo, e sim da cidade do Rio de Janeiro, aqui no Brasil. Um abraço.

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